Todos os anos, no primeiro domingo de Agosto, realizam-se as festas em honra de Nossa Senhora da Guia, um pouco à semelhança das inúmeras festividades religiosas que, nos meses de verão, ocorrem em muitas vilas e aldeias do nosso país.
O momento alto desta festa religiosa é o da procissão com a sua imagem que percorre as ruas da Vila e depois se dirige para o seu santuário acompanhada de centenas de pessoas devotas, sobretudo de loriguenses e seus familiares, sejam eles residentes locais ou residentes noutros pontos do país e do estrangeiro.
Acabada de passar a procissão de Nossa Senhora da Guia no Terreiro do Fundo, reparei num senhor de idade aparentemente avançada que, vagarosamente e apoiado na sua bengala, se dirigia pela rua no mesmo sentido da procissão. Foi o seu fato domingueiro e festivo que me levaram a fazer um disparo fotográfico para registar uma imagem que revela o espírito do dia de festa que todos os anos é vivido em Loriga, no 1º domingo de Agosto.
Não o abordei no sentido de pedir a sua autorização para o fotografar. Talvez o devesse ter feito em prol dos bons princípios de fotógrafo mas acabei por voltar a reencontrá-lo passados alguns minutos junto à ponte do Porto, quando a procissão já toda ela subia a rua com o mesmo nome. Deduzi que o seu momentâneo percurso coincidia com o da procissão (e com o meu) e iriam todos convergir para o santuário de Nossa da Guia.
A sua figura vestida num fato claro voltou novamente a cativar-me e, aproveitando um momento do seu descanso encostado a um carro, apressei-me na direcção do homem para lhe pedir a anuência de lhe tirar umas fotos (fazendo retroagir o pedido ao “disparo” que já tinha efectuado no Terreiro do Fundo).
Fruto da surdez de que é portador, a resposta deste homem revelou-me a sua idade: 90 anos. Insisti no meu pedido para que ele compreendesse os meus propósitos, mostrando-lhe declaradamente a máquina fotográfica. Acedeu amavelmente e colocou-se em sentido, desencostando-se do carro, mas mesmo assim entendeu que era para ser filmado. Não valeria a pena especificar melhor. Afinal filmar ou fotografar são actos de registar momentos...
Além disso, foi muito mais importante escutar as suas palavras que me levaram a acompanhar os seus vagarosos passos até ao Santuário de Nossa Senhora da Guia.
Assim que lhe fiz os retratos consentidos, confidenciou-me que na noite do dia anterior - um sábado que parecia de inverno com chuva e nevoeiro - foi à janela e pediu à Nossa Senhora que fizesse com que o tempo melhorasse no dia da festa para se poder deslocar ao seu santuário, pois se estivesse como no Sábado "como poderia ele dirigir-se à capela de Nossa Senhora da Guia?"
De facto, o dia da festa não tinha nada a ver com o que fizera no dia anterior: estava um dia ameno, com sol e poucas nuvens no céu...
Disse ainda que já não ouvia nada, que lhe custa a andar mas que a memória tem-na toda para poder comparar aquilo que Loriga era no passado e o que é actualmente e que lhe dá pena vê-la neste estado, com o abandono da agricultura e a decadência da indústria.
E o homem lá continuou em perseguição da procissão, subindo a custo a rua do Porto. Felizmente, aquele dia de Agosto não fazia calor como já aconteceu em anos anteriores.
Como referido atrás, a nossa direcção era a mesma e daí ter voltado a encontrar o homem encostado à porta da capela de São Sebastião, a qual se encontrava aberta porque o andor do santo, até onde a minha memória alcança, sempre foi presença habitual na procissão da Senhora da Guia. Refira-se que o São Sebastião também tem a sua festa no domingo anterior à da Nossa Senhora da Guia e do culto religioso consta a ida à sua capela para trazerem o Santo para a Vila, onde fica durante uma semana, regressando à sua capela com a procissão de Senhora da Guia. Fica tudo de caminho…
O homem deixava cair lágrimas dos seus olhos que inundavam lateralmente o nariz. Os seus lábios mordiscavam palavras mas não deu para eu ouvi-las porque a voz era baixa e eu estava à distância. Uma etapa cumprida daquilo que era a sua pretensão confidenciada à Senhora da Guia na noite do dia anterior. Largou um acenar com o braço ao São Sebastião, de certa forma uma despedida e, concerteza, as palavras que deixou esvoaçar terão a ver com um até para o ano, talvez.
A verdade é que a sua vagarosidade não foi impeditiva para conseguir alcançar a cauda da procissão que seguia junto ao cemitério, mesmo no inicio da íngreme descida para o recinto.
Não sei se era pela emotividade, pelo cansaço ou pela dificuldade da descida, o homem sentiu-se com enormes dificuldades, que o obrigaram a parar várias vezes e a amparar-se nas barras de madeira que suportavam as decorações do recinto. Pelo menos uma vez vi-o a desfalecer e quase a cair no chão, sentindo-me no dever de ampará-lo e socorrê-lo, sugerindo-lhe para se sentar um pouco num banco próximo.
Recusou e recompôs-se. O objectivo estava próximo e isso deu-lhe a força e o alento necessário para prosseguir.
A verdade é que a cauda da procissão parecia esperar por ele, não obstante as suas repetidas paragens para se recompor.
E o homem lá chegou à frente da capela, precisamente no momento em que o andor de Nossa Senhora da Guia acabava de ser largado sobre uma bancada pelos homens que o carregavam, enquanto a Banda Filarmónica da terra tocava a música das loas à padroeira.
A sua devoção e a sua fé estava a atingir o auge e lá surge o homem a aproximar-se da imagem da Senhora da Guia prostrada sobre o andor. Como do nada, o homem traz agora numa das mãos um saco vermelho. Não vi como o saco lhe foi parar à mão e não tive curiosidade de saber o seu conteúdo. Deduzo que alguém, talvez algum familiar, lhe trouxesse alguma “bucha” para alimentar o estômago, depois de todo o esforço dispendido.
Ali estava ele fixado defronte Nossa Senhora da Guia a confidenciar, a agradecer, a rezar, a alimentar o seu espírito de fé. Era o epílogo da sua caminhada para a fé.
Os momentos do seu diálogo foram breves mas os bastantes para revelar a grandeza da sua fé e da sua devoção.
Consumado o encontro, o homem lá voltou a acenar em jeito de despedida, Comovido, retirou-se da frente do andor e da imagem.
Olhando para o distante, talvez digerindo as suas emoções, parecia agora respirar tranquilidade resultante da liberdade conseguida através da concretização da promessa da sua presença…
Excelente trabalho! Abraço
ResponderEliminarMuito interessante João!
ResponderEliminarUma bela história!... Afinal... apesar das palavras... as imagens aprofundam o sentido da própria história. Um testemunho vivo da FÉ e da DEVOÇÃO à NªSrª da Guia...
Olá,
ResponderEliminarFui ao teu blog à espera de encontrar outro tipo de fotografias. Quem sabe mais Internacionais.
Mas, valeu a pena, ver e ler este testemunho.
Muito bom!
Cláudia
Lindas fotos, lindo blog!Gosto muito!
ResponderEliminarDulce
Pois este senhor é o meu primo Abílio (primo do meu pai- Joaquim Alves Pereira), e vive em Sacavém no Bºde Stº António!
ResponderEliminarSempre vestido a rigor percorrendo todos os dias as ruas de Sacavém a pé!!!
É uma fonte de jovialidade.
Parabens ao autor.
ResponderEliminarDas coisas mais simples na vida cria-se uma grande história.
Natália Prata
Como sempre, adorei... Um Abraço.
ResponderEliminarDeixo aqui uns dos comentários da minha mãe, Deolinda:
ResponderEliminar"Gostei muito de ver este Sr no BLOG.Eu admiro-o muito, não só como homem mas pela idade e coragem que ele tem de fazer assim uma caminhada até à Sr da GUIA a pé. Pois este SR é o meu primo Abílio.(Pai tio por alcunha)Ele que me desculpe de ter posto o alcunha, mas é assim que se conhecem as pessoas.Sempre o admirei porque ele sempre gostou de andar bem vestido.E sempre muito popular.Beijos para ele.Grata a João Amaro.
É primo directo da minha mãe e a mãe dele era irmã da minha avó ,que se chamava Maria José.
Deolinda "
Grande Reportagem! Belos registos!
ResponderEliminarBjs João & Familia