sexta-feira, 26 de março de 2021

Calhão Bogueiro – Contributo para a clarificação do topónimo

Há quem designe o Calhão Bogueiro como Calhão Mogueiro, assim como chamam Lagoa do Paixão à Lagoa do Peixão ou ainda Bicarões em vez de Biqueirões. Todos eles são lugares situados em altitudes acima de mil metros na freguesia de Loriga, Serra da Estrela. Algo está mal quando os próprios naturais divergem na identificação do mesmo lugar com nomes diferentes.

Neste artigo pretende-se contribuir para clarificar o topónimo do Calhão Bogueiro, num esforço para dissipar dúvidas sobre este lugar e uniformizar a sua identidade.


O que é o Calhão Bogueiro?

O Calhão Bogueiro não é somente uma cascata... Trata-se de uma faixa da Ribeira da Nave situada a montante da Praia Fluvial de Loriga (a uma distância de cerca de 1.000 metros seguindo o leito da ribeira) e está ladeado na margem esquerda pela Eira Romana, uma enorme formação rochosa de superfície aplanada. 

Esta zona da ribeira tem características próprias que se definem pelo estreitamento acentuado do curso de água, forçado a comprimir-se pela pressão de grandes blocos de rochas graníticas nas duas margens, numa extensão de aproximadamente 100 metros de cumprimento e desnível de 35 metros (de 1011 m de altitude no topo da cascata para 976 metros onde o afunilamento termina. Ele inicia-se num pequeno poço ladeado de rochas onde se projecta a água que cai duma altura de 10 metros – a cascata. 

Imediatamente a seguir ao poço, segue-se o estreitamento acentuado do leito da ribeira de tal forma que são muito poucos os metros que separam as duas margens. Em épocas de chuvas, o caudal que corre no Calhão Bogueiro é bastante considerável uma vez que, para além da água proveniente dos covões, a ribeira já incorpora na margem direita os cursos do ribeiro da Barroca da Malhada da Areia (que se inicia na Penha do Gato), do ribeiro do Círio que corre entre a zona do Morgado e a Lomba dos Ovos, da ribeira da Talada que se inícia no Corvo da Talada e, na margem esquerda, o ribeiro da Barroca dos Charcos que provém da zona da Penha dos Abutres. 


Calhão Bogueiro ou Calhão Mogueiro?

Até ao momento, não foi possível encontrar evidências documentais que atestem a designação do lugar como “Calhão Bogueiro” ou “Calhão Mogueiro”. Retem-se no entanto “o passa palavra” das pessoas mais velhas que a ele se referiam como “Calhão Bogueiro”, sobretudo de gente que cultivava em terrenos bem próximos. Acredita-se que os nossos antepassados sabiam, como ninguém, apelidar os lugares de acordo com as características que mais se evidenciavam.

São lamentáveis as adulterações ou re-batismos de algo que já foi denominado há muito tempo. A internet é um canal que tende a confundir e a desinformar com a coexistência de denominações correctas e incorrectas (ampliadas com as redes sociais). Mais grave ainda é o facto determinadas entidades locais ou ligadas à preservação do Parque Natural da Serra da Estrela partilharem essa informação sem que a mesma tenha sido validada. Não existe cuidado e preocupação em assegurar informação com as denominações correctas.

Assim, como forma de contrariar essa tendência de ambiguidade e tentar contribuir para a clarificação toponómica deste local, propus-me a tentar compreender de forma simples o significado das palavras “mogueiro” e “bogueiro”, recorrrendo ao dicionário.

A palavra “mogueiro” não existe no dicionário de língua portuguesa da Porto Editora (na sua 5ª edição), assim como não existem outras palavras com pronúncia similar, seja mougueiro ou mugueiro.

De acordo com o mesmo dicionário, a palavra “bogueiro” significa “rede para apanhar bogas e outro peixe miúdo” e também existe a palavra  “bogueira” que quer dizer “cova onde as bogas desovam”, Ora, sendo bogueira referida a uma cova (adequação a um substantivo feminino), poderá transpor-se para bogueiro  quando seja para se referir a um substantivo masculino, como é o caso de calhão. Assim, teremos um calhão bogueiro para se referenciar um local onde existem buracos ou covas onde desovam as bogas.

Resta saber se naquele local existem ou existiram bogas. Algumas pesquisas efectudas dão nota da existência de bogas – Boga-comum (Chondrostoma polylepis) em zonas altas da serra, “um local de refúgio para a vida selvagem, com a presença de espécies com elevado valor para a conservação como a Lagartixa-de-montanha, a Boga-comum e o Morcego-de-ferradura-mediterrânico” (artigo de 2014 sobre o 38º aniversário da criação do Parque Natural da Serra da Estrela no site da Quercus.pt). Os adultos desta espécie efectuam migrações reprodutoras para montante, desovando em locais com água corrente, pouco profundos e com fundo pedregoso. Sendo muito sensível à poluição e encontrando-se sob ameaça de extinção, a boga-comum é considerada uma espécie protegida.

Desta forma, e levando em conta que os nossos antepassados sabiam designar os locais pelas suas características, é muito provável que o nome de “Calhão Bogueiro” tenha sido atribuído ao local devido às suas características morfológicas (calhão) e à existência de bogas nos pequenos poços e buracos (bogueiro).

Enquanto não surgir informação mais relevante e consistente que certifique outra denominação, aquele lugar continuará a ser o Calhão Bogueiro...