domingo, 25 de setembro de 2011

Momentos de devoção e fé

Todos os anos, no primeiro domingo de Agosto, realizam-se as festas em honra de Nossa Senhora da Guia, um pouco à semelhança das inúmeras festividades religiosas que, nos meses de verão, ocorrem em muitas vilas e aldeias do nosso país.

O momento alto desta festa religiosa é o da procissão com a sua imagem que percorre as ruas da Vila e depois se dirige para o seu santuário acompanhada de centenas de pessoas devotas, sobretudo de loriguenses e seus familiares, sejam eles residentes locais ou residentes noutros pontos do país e do estrangeiro.







Acabada de passar a procissão de Nossa Senhora da Guia no Terreiro do Fundo, reparei num senhor de idade aparentemente avançada que, vagarosamente e apoiado na sua bengala, se dirigia pela rua no mesmo sentido da procissão. Foi o seu fato domingueiro e festivo que me levaram a fazer um disparo fotográfico para registar uma imagem que revela o espírito do dia de festa que todos os anos é vivido em Loriga, no 1º domingo de Agosto.




Não o abordei no sentido de pedir a sua autorização para o fotografar. Talvez o devesse ter feito em prol dos bons princípios de fotógrafo mas acabei por voltar a reencontrá-lo passados alguns minutos junto à ponte do Porto, quando a procissão já toda ela subia a rua com o mesmo nome. Deduzi que o seu momentâneo percurso coincidia com o da procissão (e com o meu) e iriam todos convergir para o santuário de Nossa da Guia.


A sua figura vestida num fato claro voltou novamente a cativar-me e, aproveitando um momento do seu descanso encostado a um carro, apressei-me na direcção do homem para lhe pedir a anuência de lhe tirar umas fotos (fazendo retroagir o pedido ao “disparo” que já tinha efectuado no Terreiro do Fundo).




Fruto da surdez de que é portador, a resposta deste homem revelou-me a sua idade: 90 anos. Insisti no meu pedido para que ele compreendesse os meus propósitos, mostrando-lhe declaradamente a máquina fotográfica. Acedeu amavelmente e colocou-se em sentido, desencostando-se do carro, mas mesmo assim entendeu que era para ser filmado. Não valeria a pena especificar melhor. Afinal filmar ou fotografar são actos de registar momentos...
Além disso, foi muito mais importante escutar as suas palavras que me levaram a acompanhar os seus vagarosos passos até ao Santuário de Nossa Senhora da Guia.



Assim que lhe fiz os retratos consentidos, confidenciou-me que na noite do dia anterior - um sábado que parecia de inverno com chuva e nevoeiro - foi à janela e pediu à Nossa Senhora que fizesse com que o tempo melhorasse no dia da festa para se poder deslocar ao seu santuário, pois se estivesse como no Sábado "como poderia ele dirigir-se à capela de Nossa Senhora da Guia?"
De facto, o dia da festa não tinha nada a ver com o que fizera no dia anterior: estava um dia ameno, com sol e poucas nuvens no céu...
Disse ainda que já não ouvia nada, que lhe custa a andar mas que a memória tem-na toda para poder comparar aquilo que Loriga era no passado e o que é actualmente e que lhe dá pena vê-la neste estado, com o abandono da agricultura e a decadência da indústria.
E o homem lá continuou em perseguição da procissão, subindo a custo a rua do Porto. Felizmente, aquele dia de Agosto não fazia calor como já aconteceu em anos anteriores.


Como referido atrás, a nossa direcção era a mesma e daí ter voltado a encontrar o homem encostado à porta da capela de São Sebastião, a qual se encontrava aberta porque o andor do santo, até onde a minha memória alcança, sempre foi presença habitual na procissão da Senhora da Guia. Refira-se que o São Sebastião também tem a sua festa no domingo anterior à da Nossa Senhora da Guia e do culto religioso consta a ida à sua capela para trazerem o Santo para a Vila, onde fica durante uma semana, regressando à sua capela com a procissão de Senhora da Guia. Fica tudo de caminho…



O homem deixava cair lágrimas dos seus olhos que inundavam lateralmente o nariz. Os seus lábios mordiscavam palavras mas não deu para eu ouvi-las porque a voz era baixa e eu estava à distância. Uma etapa cumprida daquilo que era a sua pretensão confidenciada à Senhora da Guia na noite do dia anterior. Largou um acenar com o braço ao São Sebastião, de certa forma uma despedida e, concerteza, as palavras que deixou esvoaçar terão a ver com um até para o ano, talvez.



A verdade é que a sua vagarosidade não foi impeditiva para conseguir alcançar a cauda da procissão que seguia junto ao cemitério, mesmo no inicio da íngreme descida para o recinto.



Não sei se era pela emotividade, pelo cansaço ou pela dificuldade da descida, o homem sentiu-se com enormes dificuldades, que o obrigaram a parar várias vezes e a amparar-se nas barras de madeira que suportavam as decorações do recinto. Pelo menos uma vez vi-o a desfalecer e quase a cair no chão, sentindo-me no dever de ampará-lo e socorrê-lo, sugerindo-lhe para se sentar um pouco num banco próximo.



Recusou e recompôs-se. O objectivo estava próximo e isso deu-lhe a força e o alento necessário para prosseguir.



A verdade é que a cauda da procissão parecia esperar por ele, não obstante as suas repetidas paragens para se recompor.




E o homem lá chegou à frente da capela, precisamente no momento em que o andor de Nossa Senhora da Guia acabava de ser largado sobre uma bancada pelos homens que o carregavam, enquanto a Banda Filarmónica da terra tocava a música das loas à padroeira.




A sua devoção e a sua fé estava a atingir o auge e lá surge o homem a aproximar-se da imagem da Senhora da Guia prostrada sobre o andor. Como do nada, o homem traz agora numa das mãos um saco vermelho. Não vi como o saco lhe foi parar à mão e não tive curiosidade de saber o seu conteúdo. Deduzo que alguém, talvez algum familiar, lhe trouxesse alguma “bucha” para alimentar o estômago, depois de todo o esforço dispendido.


Ali estava ele fixado defronte Nossa Senhora da Guia a confidenciar, a agradecer, a rezar, a alimentar o seu espírito de fé. Era o epílogo da sua caminhada para a fé.



Os momentos do seu diálogo foram breves mas os bastantes para revelar a grandeza da sua fé e da sua devoção.





Consumado o encontro, o homem lá voltou a acenar em jeito de despedida, Comovido, retirou-se da frente do andor e da imagem.




Olhando para o distante, talvez digerindo as suas emoções, parecia agora respirar tranquilidade resultante da liberdade conseguida através da concretização da promessa da sua presença…




9 comentários:

  1. Muito interessante João!
    Uma bela história!... Afinal... apesar das palavras... as imagens aprofundam o sentido da própria história. Um testemunho vivo da FÉ e da DEVOÇÃO à NªSrª da Guia...

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  2. Olá,
    Fui ao teu blog à espera de encontrar outro tipo de fotografias. Quem sabe mais Internacionais.
    Mas, valeu a pena, ver e ler este testemunho.
    Muito bom!
    Cláudia

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  3. Pois este senhor é o meu primo Abílio (primo do meu pai- Joaquim Alves Pereira), e vive em Sacavém no Bºde Stº António!

    Sempre vestido a rigor percorrendo todos os dias as ruas de Sacavém a pé!!!

    É uma fonte de jovialidade.

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  4. Parabens ao autor.
    Das coisas mais simples na vida cria-se uma grande história.
    Natália Prata

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  5. Deixo aqui uns dos comentários da minha mãe, Deolinda:
    "Gostei muito de ver este Sr no BLOG.Eu admiro-o muito, não só como homem mas pela idade e coragem que ele tem de fazer assim uma caminhada até à Sr da GUIA a pé. Pois este SR é o meu primo Abílio.(Pai tio por alcunha)Ele que me desculpe de ter posto o alcunha, mas é assim que se conhecem as pessoas.Sempre o admirei porque ele sempre gostou de andar bem vestido.E sempre muito popular.Beijos para ele.Grata a João Amaro.
    É primo directo da minha mãe e a mãe dele era irmã da minha avó ,que se chamava Maria José.
    Deolinda "

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  6. Grande Reportagem! Belos registos!
    Bjs João & Familia

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